Ga Setubal por Helena Wolfenson .
Egresso de bandas como Pitanga em Pé de Amora e Trupe Chá de Boldo, Ga Setúbal apresenta trabalho solo em que afetos são o fio condutor e ganham ares de espetáculo.
Para se escutar pela primeira vez VIA, novo álbum do paulistano Ga Setúbal, é recomendável começar de olhos bem fechados.
É que, muito além das sutilezas instrumentais que certamente merecem atenção total, a metodologia também é útil para distinguir com mais nitidez toda a atmosfera típica da coxia de um teatro – seu cheiro de coisa antiga misturado ao suor dos artistas, uma leve poeira suspensa que roça a pele, os sons da engrenagem de uma cena em pleno funcionamento.
Está tudo lá, rememorado faixa a faixa. Escrito ao longo do ano de 2017, e produzido em 2018, VIA evoca um universo de que a arte sentia saudade desde as décadas de 70 e 80. Bebe na fonte de criações mágicas da música daquela época, a exemplo de O Grande Circo Místico e Calabar, para dar ares de espetáculo a afetos e memórias inventados por Ga, e dispostos em um mapa múndi de relações amorosas tão sólidas quanto uma mordida na carne.
Seja no calor fértil do mangue ou em um monolito que se desloca lentamente, a cama em que Ga apoia suas letras trata da lascívia com naturalidade. Nela, assim como é franco o desejo, também não têm rodeios as construções de rima e métrica.
VIA abre com “Canção de Partida”, que, como cumprindo com perícia o papel de primeira faixa, já anuncia os elementos que vão envolver todo o disco. É na enumeração de um mundo cheio de desejo e imagens cruas que a voz de Ga atua com mais força, apoiada na potência particular dos bons contadores de histórias.
Um universo de ares iorubá desvenda “Artéria de Titã”, que vem seguida pela sensual “Tempo em Transição”, em que, para falar do fim de um amor no qual se vislumbram “perfis a se odiar”, o compositor mistura Jovem Guarda à Bossa Nova. Na faixa 4, “Volúpia Pura”, Ga conta com a clareza da cantora Luiza Lian para conduzir aliterações e gracejos com a língua.
Menções ora literais, ora nem tanto aos mestres Gal, Caetano e Djavan permeiam “Monolito”. Em “Chuva e Ócio”, são sopros de sax que contornam a imagem de um dia que, mesmo tendo todos os elementos para ser completamente perdido, se transforma em ouro pela força da música.
Um crescente imagético embalado pelo cyber xaxado de Ga demonstra, em “Decassílabas”, o pleno domínio da métrica que dá nome à canção, enquanto “Língua Morta” tem um cheiro de mar que se mistura à malandragem para cavar na areia e abrir espaço para o encerramento do álbum.
Ondas de realidade lambem todos os acordes de “Séc. XXI”, que gera uma sensação de quase náusea e pura vertigem. Assumindo mais uma vez o papel de propagador de tramas, Ga narra a completa desilusão fruto de uma guerra de poderes que, a depender da escolha do ouvinte, pode se passar tanto no palanque quanto debaixo dos lençóis.
Produzido por Lourenço Rebetez e Charles Tixier, VIA é o primeiro disco solo de Ga Setúbal, ex-Pitanga em Pé de Amora e Trupe Chá de Boldo. No novo álbum, Ga é autor de todas as músicas, e grava voz, violão, guitarra, synths e trompete.
Texto por Marcella Franco